205. A algumas pessoas a
doutrina da reencarnação se afigura destruidora dos laços de família, com o
fazê-los anteriores à existência atual.
“Ela os distende; não os
destrói. Fundando-se o parentesco em afeições anteriores, menos precários são os laços
existentes entre os membros de uma mesma família. Essa doutrina amplia os deveres
da fraternidade, porquanto, no vosso vizinho, ou no vosso servo, pode achar-se um Espírito a
quem tenhais estado presos pelos laços da consangüinidade.”
a) - Ela, no entanto,
diminui a importância que alguns dão à genealogia, visto que qualquer pode ter tido
por pai um Espírito que haja pertencido a outra raça, ou que haja vivido em condição muito
diversa.
“É exato; mas essa
importância assenta no orgulho. Os títulos, a categoria social, a riqueza, eis o que esses
tais veneram nos seus antepassados. Um, que coraria de contar, como ascendente, honrado
sapateiro, orgulhar-se-ia de descender de um gentil-homem devasso. Digam, porém, o que
disserem, ou façam o que fizerem, não obstarão a que as coisas sejam como são, que
não foi consultando-lhes a vaidade que Deus formulou as leis da Natureza.”
206. Do fato de não haver
filiação entre os Espíritos dos descendentes de qualquer família, seguir-se-á que
o culto dos avoengos seja ridículo?
“De modo nenhum. Todo homem
deve considerar-se ditoso por pertencer a uma família em que encarnaram
Espíritos elevados. Se bem os Espíritos não procedam uns dos outros, nem por isso menos
afeição consagram aos que lhes estão ligados pelos elos da família, dado que muitas
vezes são atraídos para tal ou qual família pela simpatia, ou pelos laços que anteriormente se
estabeleceram. Mas, ficai certos de que os vossos antepassados não se honram com o culto
que lhes tributais por orgulho. Em vós não se refletem os méritos de que eles gozem,
senão na medida dos esforços que empregais por seguir os bons exemplos que vos deram.
Somente nestas condições lhes é grata e até mesmo útil a lembrança que deles
guardais.”
Parecenças físicas e
morais
207. Freqüentemente, os
pais transmitem aos filhos a parecença física. Transmitirão também
alguma parecença moral?
“Não, que diferentes são as
almas ou Espíritos de uns e outros. O corpo deriva do corpo, mas o Espírito não
procede do Espírito. Entre os descendentes das raças apenas há consangüinidade.”
a) - Donde se originam as
parecenças morais que costuma haver entre pais e filhos?
“É que uns e outros são
Espíritos simpáticos, que reciprocamente se atraíram pela analogia dos pendores.”
208. Nenhuma influência
exercem os Espíritos dos pais sobre o filho depois do nascimento deste?
“Ao contrário: bem grande
influência exercem. Conforme já dissemos, os Espíritos têm que contribuir para o
progresso uns dos outros. Pois bem, os Espíritos dos pais têm por missão desenvolver os de
seus filhos pela educação. Constitui-lhes isso uma tarefa. Tornarse-ão culpados, se vierem a
falir no seu desempenho.”
209. Por que é que de
pais bons e virtuosos nascem filhos de natureza perversa? Por outra: por que é que
as boas qualidades dos pais nem sempre atraem, por simpatia, um bom Espírito para lhes
animar o filho?
“Não é raro que um mau
Espírito peça lhe sejam dados bons pais, na esperança de que seus conselhos o
encaminhem por melhor senda e muitas vezes Deus lhe concede o que deseja.”
210. Pelos seus
pensamentos e preces podem, os pais atrair para o corpo, em formação, do filho um bom
Espírito, de preferência a um inferior?
“Não, mas podem melhorar o
Espírito do filho que lhes nasceu e está confiado. Esse o dever deles. Os maus
filhos são uma provação para os pais.”
211. Donde deriva a
semelhança de caráter que muitas vezes existe entre dois irmãos, mormente se
gêmeos?
“São Espíritos simpáticos
que se aproximam por analogia de sentimentos e se sentem felizes por estar
juntos.”
212. Há dois Espíritos,
ou, por outra, duas almas, nas criança cujos corpos nascem ligados, tendo comuns
alguns órgãos?
“Sim, mas a semelhança entre
elas é tal que faz vos pareçam, em muitos casos, uma só.”
213. Pois que nos gêmeos
os Espíritos encarnam por simpatia, donde provém a aversão que às vezes se
nota entre eles?
“Não é de regra que sejam
simpáticos os Espíritos dos gêmeos. Acontece também que Espíritos maus entendam
de lutar juntos no palco da vida.”
214. Que se deve pensar
dessas histórias de crianças que lutam no seio materno?
“Lendas! Para significarem
quão inveterado era o ódio que reciprocamente se votavam, figuram-no a se
fazer sentir antes do nascimento delas. Em geral, não levais muito em conta as imagens
poéticas.”
215. Que é o que dá
origem ao caráter distintivo que se nota em cada povo?
“Também os Espíritos se
grupam em famílias, formando-as pela analogia de seus pendores mais ou menos
puros, conforme a elevação que tenham alcançado. Pois bem! um povo é uma grande família
formada pela reunião de Espíritos simpáticos. Na tendência que apresentam os membros dessas
famílias, para se unirem, é que está a origem da semelhança que, existindo entre os
indivíduos, constitui o caráter distintivo de cada povo. Julgas que Espíritos bons e
humanitários procurem, para nele encarnar, um povo rude e grosseiro? Não. Os Espíritos
simpatizam com as
coletividades, como simpatizam com os indivíduos. Naquelas em cujo seio se encontrem, eles se acham
no meio que lhes é próprio.”
216. Em suas novas
existências conservará o Espírito traços do caráter moral de suas existências
anteriores?
“Isso pode dar-se. Mas,
melhorando-se, ele muda. Pode também acontecer que sua posição social venha a ser
outra. Se de senhor passa a escravo, inteiramente diversos serão os seus gostos e
dificilmente o reconheceríeis. Sendo o Espírito sempre o mesmo nas diversas encarnações, podem
existir certas analogias entre as suas manifestações, se bem que modificadas pelos
hábitos da posição que ocupe, até que um aperfeiçoamento notável lhe haja mudado
completamente o caráter, porquanto, de orgulhoso e mau, pode tornar-se humilde e bondoso, se se
arrependeu.”
217. E do caráter físico
de suas existências pretéritas conserva o Espírito traços nas suas existências
posteriores?
“O novo corpo que ele toma
nenhuma relação tem com o que foi anteriormente destruído. Entretanto, o
Espírito se reflete no corpo. Sem dúvida que este é unicamente matéria, porém, nada
obstante, se modela pelas capacidades do Espírito, que lhe imprime certo cunho, sobretudo ao
rosto, pelo que é verdadeiro dizer-se que os olhos são o espelho da alma, isto é, que o
semblante do indivíduo lhe reflete de modo particular a alma. Assim é que uma pessoa
excessivamente feia, quando nela habita um Espírito bom, criterioso, humanitário, tem qualquer
coisa que agrada, ao passo que há rostos belíssimos que nenhuma impressão te causam,
que até chegam a inspirar-te repulsão. Poderias supor que somente corpos bem moldados
servem de envoltório aos mais perfeitos Espíritos, quando o certo é que todos os dias
deparas com homens de bem, sob um exterior disforme. Sem que haja pronunciada parecença,
a semelhança dos gostos e das inclinações pode, portanto,
dar lugar ao que se chama “um ar de família.”
Nenhuma relação essencial
guardando o corpo que a alma toma numa encarnação com o de que se revestiu em
encarnação anterior, visto que aquele lhe pode vir de procedência muito diversa da
deste, fora absurdo pretender-se que, numa série de existências, haja uma
semelhança que é inteiramente fortuita. Todavia, as qualidades do Espírito freqüentemente
modificam os órgãos que lhe servem para as manifestações e lhe imprimem ao semblante físico
e até ao conjunto de suas maneiras um cunho especial. É assim que, sob um envoltório
corporal da mais humilde aparência, se pode deparar a expressão da grandeza e da
dignidade, enquanto sob um envoltório de aspecto senhoril se percebe freqüentemente a da
baixeza e da ignomínia. Não é pouco freqüente observar-se que certas pessoas,
elevando-se da mais ínfima posição, tomam sem esforços os hábitos e as maneiras da alta sociedade.
Parece que elas aí vêm a achar-se de novo no seu elemento.
Outras, contrariamente,
apesar do nascimento e da educação, se mostram sempre deslocadas em tal meio. De
que modo se há de explicar esse fato, senão como reflexo daquilo que o Espírito foi
antes?
Idéias inatas
218. Encarnado, conserva
o Espírito algum vestígio das percepções que teve e dos conhecimentos que
adquiriu nas existências anteriores?
“Guarda vaga lembrança, que
lhe dá o que se chama idéias inatas.”
a) - Não é, então,
quimérica a teoria das idéias inatas?
“Não; os conhecimentos
adquiridos em cada existência não mais se perdem. Liberto da matéria, o Espírito
sempre os tem presentes. Durante a encarnação, esquece-os em parte, momentaneamente; porém, a
intuição que deles conserva lhe auxilia o progresso. Se não fosse assim, teria que
recomeçar constantemente. Em cada nova existência, o ponto de partida, para o Espírito, é
o em que, na existência precedente, ele ficou.”
b) - Grande conexão deve
haver entre duas existências consecutivas?
“Nem sempre tão grande
quanto talvez o suponhas, dado que bem diferentes são, muitas vezes, as posições do
Espírito nas duas e que, no intervalo de uma e outra, pode ele ter progredido.” (216)
219. Qual a origem das
faculdades extraordinárias dos indivíduos que, sem estudo prévio, parecem
ter a intuição de certos conhecimentos, o das línguas, do cálculo, etc.?
“Lembrança do passado;
progresso anterior da alma, mas de que ela não tem consciência. Donde queres
que venham tais conhecimentos? O corpo muda, o Espírito, porém, não muda, embora
troque de roupagem.”
220. Pode o Espírito,
mudando de corpo, perder algumas faculdades intelectuais, deixar de ter, por
exemplo, o gosto das artes?
“Sim, desde que conspurcou a
sua inteligência ou a utilizou mal. Depois, uma faculdade qualquer pode
permanecer adormecida durante uma existência, por querer o Espírito exercitar outra,
que nenhuma relação tem com aquela. Essa, então, fica em estado latente, para reaparecer
mais tarde.”
221. Dever-se-ão atribuir
a uma lembrança retrospectiva o sentimento instintivo que o homem, mesmo quando
selvagem, possui da existência de Deus e o pressentimento da vida futura?
“É uma lembrança que ele
conserva do que sabia como Espírito antes de encarnar. Mas, o orgulho amiudadamente
abafa esse sentimento.”
a) - Serão devidas a essa
mesma lembrança certas crenças relativas à Doutrina Espírita, que se observam
em todos os povos?
“Esta doutrina é tão antiga
quanto o mundo; tal o motivo por que em toda parte a encontramos, o que constitui
prova de que é verdadeira. Conservando a intuição do seu estado de Espírito, o
Espírito encarnado tem, instintivamente, consciência do mundo invisível, mas os
preconceitos bastas vezes falseiam essa idéia e a ignorância lhe mistura a superstição.”
CAPÍTULO V
CONSIDERAÇÕES SOBRE A PLURALIDADE DAS EXISTÊNCIAS
222. Não é novo, dizem
alguns, o dogma da reencarnação; ressuscitaram-no da doutrina de Pitágoras. Nunca
dissemos ser de invenção moderna a Doutrina Espírita. Constituindo uma lei da
Natureza, o Espiritismo há de ter existido desde a origem dos tempos e sempre nos
esforçamos por demonstrar que dele se descobrem sinais na antigüidade mais remota.
Pitágoras, como se sabe, não foi o autor do sistema da metempsicose; ele o colheu
dos filósofos indianos e dos egípcios, que o tinham desde tempos imemoriais. A idéia
da transmigração das almas formava, pois, uma crença vulgar, aceita pelos homens mais
eminentes. De que modo a adquiriram? Por uma revelação, ou por intuição? Ignoramo-lo
Seja, porém, como for, o que não padece dúvida é que uma idéia não atravessa séculos e
séculos, nem consegue impor-se a inteligências de escol, se não contiver algo de sério.
Assim, a ancianidade desta doutrina, em vez de ser uma objeção, seria prova a seu favor.
Contudo, entre a metempsicose dos antigos e a moderna doutrina da reencarnação, há, como
também se sabe, profunda diferença, assinalada pelo fato de os Espíritos rejeitarem, de
maneira absoluta, a transmigração da alma do homem para os animais e reciprocamente.
Portanto, ensinando o dogma
da pluralidade das existências corporais, os Espíritos renovam uma doutrina que
teve origem nas primeiras idades do mundo e que se conservou no íntimo de muitas pessoas,
até aos nossos dias. Simplesmente, eles a apresentam de um ponto de vista mais racional, mais
acorde com as leis progressivas da Natureza e mais de conformidade com a sabedoria
do Criador, despindo-a de todos os acessórios da superstição. Circunstância
digna de nota é que não só neste livro os Espíritos a ensinaram no decurso dos últimos
tempos: já antes da sua publicação, numerosas comunicações da mesma natureza se obtiveram
em vários países, multiplicando-se depois, consideravelmente. Talvez
fosse aqui o caso de examinarmos por que os Espíritos não parecem todos de acordo
sobre esta questão. Mais tarde, porém, voltaremos a este assunto.
Examinaremos de outro ponto
de vista a matéria e, abstraindo de qualquer intervenção dos Espíritos,
deixemo-los de lado, por enquanto,. Suponhamos que esta teoria nada tenha que ver com eles;
suponhamos mesmo que jamais se haja cogitado de Espíritos. Coloquemo-nos,
momentaneamente, num terreno neutro, admitindo o mesmo grau de probabilidade para ambas as
hipóteses, isto é, a da pluralidade e a da unicidade das existências corpóreas, e
vejamos para que lado a razão e o nosso próprio interesse nos farão pender.
Muitos repelem a idéia da
reencarnação pelo só motivo de ela não lhes convir. Dizem que uma existência já
lhes chega de sobra e que, portanto, não desejariam recomeçar outra semelhante. De alguns
sabemos que saltam em fúria só com o pensarem que tenham de voltar à Terra.
Perguntar-lhes-emos apenas se imaginam que Deus lhes pediu o parecer, ou consultou os gostos, para
regular o Universo. Uma de duas: ou a reencarnação existe, ou não existe; se existe, nada
importa que os contrarie; terão que a sofrer, sem que para isso lhes peça Deus permissão.
Afiguram-se-nos os que assim falam um doente a dizer: Sofri hoje bastante, não quero
sofrer mais amanhã. Qualquer que seja o seu mau-humor, não terá por isso que sofrer menos no
dia seguinte, nem nos que se sucederem, até que se ache curado. Conseguintemente, se
os que de tal maneira se externam tiverem que viver de novo, corporalmente, tornarão a
viver, reencarnarão. Nada lhes adiantará rebelarem-se, quais crianças que não querem ir para o colégio, ou
condenados, para a prisão. Passarão pelo que têm de passar.
São demasiado pueris
semelhantes objeções, para merecerem mais seriamente examinadas. Diremos, todavia, aos que as
formulam que se tranqüilizem, que a Doutrina Espírita, no tocante à reencarnação, não
é tão terrível como a julgam; que, se a houvessem estudado a fundo, não se mostrariam tão
aterrorizados; saberiam que deles dependem as condições da nova existência, que será
feliz ou desgraçada, conforme ao que tiverem feito neste mundo; que desde agora poderão
elevar-se tão alto que a recaída no lodaçal não lhes seja mais de temer.
Suponhamos dirigir-nos a
pessoas que acreditam num futuro depois da morte e não aos que criam para si a
perspectiva do nada, ou pretendem que suas almas se vão afogar num todo universal, onde
perdem a individualidade, como os pingos da chuva no oceano, o que vem a dar quase no
mesmo. Ora, pois: se credes num futuro qualquer, certo não admitis que ele seja idêntico para
todos, porquanto de outro modo, qual a utilidade do bem? Por que haveria o homem de
constranger-se? Por que deixaria de satisfazer a todas as suas paixões, a todos os seus desejos,
embora a custa de outrem, uma vez que por isso não ficaria sendo melhor, nem pior? Credes, ao
contrário, que esse futuro será mais ou menos ditoso ou inditoso, conforme ao que
houverdes feito durante a vida e então desejais que seja tão afortunado quanto possível,
visto que há de durar pela eternidade, não? Mas, porventura, teríeis a pretensão de ser
dos homens mais perfeitos que hajam existido na Terra e, pois, com direito a alcançardes de
um salto a suprema felicidade dos eleitos? Não. Admitis então que há homens de valor maior
do que o vosso e com direito a um lugar melhor, sem daí resultar que vos conteis
entre os réprobos. Pois bem! Colocai-vos mentalmente, por um instante, nessa situação
intermédia, que será a vossa, como acabastes de reconhecer, e imaginai que alguém vos
venha dizer: Sofreis; não sois tão felizes quanto poderíeis ser, ao passo que diante de vós
estão seres que gozam de completa ventura. Quereis mudar na deles a vossa
posição? - Certamente, respondereis; que devemos fazer? - Quase nada: recomeçar o trabalho
mal executado e executá-lo melhor. - Hesitaríeis em aceitar, ainda que a poder de muitas
existências de provações? Façamos outra comparação mais prosaica. Figuremos que a um
homem que, sem ter deixado a miséria extrema, sofre, no entanto, privações, por
escassez de recursos, viessem dizer: Aqui está uma riqueza imensa de que podes gozar; para
isto só é necessário que trabalhes arduamente durante um minuto. Fosse ele o mais preguiçoso
da Terra, que sem hesitar diria: Trabalhemos um minuto, dois minutos, uma hora, um dia,
se for preciso. Que importa isso, desde que me leve a acabar os meus dias na fartura? Ora,
que é a duração da vida corpórea, em confronto com a eternidade? Menos que um
minuto, menos que um segundo.
Temos visto algumas pessoas
raciocinarem deste modo: Não é possível que Deus, soberanamente bom como é,
imponha ao homem a obrigação de recomeçar uma série de misérias e tribulações.
Acharão, porventura, essas pessoas que há mais bondade em condenar Deus o homem a
sofrer perpetuamente, por motivo de alguns momentos de erro, do que em lhe facultar meios
de reparar suas faltas? “Dois industriais contrataram dois operários, cada um dois
quais podia aspirar a se tornar sócio do respectivo patrão.
Aconteceu que esses dois
operários certa vez empregaram muito mal o seu dia, merecendo ambos ser despedidos. Um dos
industriais, não obstante as súplicas do seu, o mandou embora e o pobre operário,
não tendo achado mais trabalho, acabou por morrer na miséria.
O outro disse ao seu:
Perdeste um dia; deves-me por isso uma compensação. Executaste mal o teu trabalho; ficaste
a me dever uma reparação. Consinto que o recomeces. Trata de executá-lo bem, que te
conservarei ao meu serviço e poderás continuar aspirando à posição superior que te prometi.”
Será preciso perguntemos qual dos industriais foi mais humano? Dar-se-á que Deus, que é a
clemência mesma, seja mais inexorável do que um homem?
Alguma coisa de pungente há
na idéia de que a nossa sorte fique para sempre decidida, por efeito de
alguns anos de provações, ainda quando de nós não tenha dependido o atingirmos a perfeição, ao
passo que eminentemente consoladora é a idéia oposta, que nos permite a esperança. Assim,
sem nos pronunciarmos pró ou contra a pluralidade das existências, sem preferirmos
uma hipótese a outra, declaramos que, se aos homens fosse dado escolher, ninguém
quereria o julgamento sem apelação. Disse um filósofo que, se Deus não existisse, fora
mister inventá-lo, para felicidade do gênero humano. Outro tanto se poderia dizer sobre a
pluralidade das existências. Mas, conforme atrás ponderamos, Deus não nos pede permissão, nem
consulta os nossos gostos. Ou isto é, ou não é. Vejamos de que lado estão as
probabilidades e encaremos de outro ponto de vista o assunto, unicamente como estudo filosófico,
sempre abstraindo do ensino dos Espíritos.
Se não há reencarnação, só
há, evidentemente, uma existência corporal. Se a nossa atual existência corpórea é
única, a alma de cada homem foi criada por ocasião do seu nascimento, a menos que se
admita a anterioridade da alma, caso em que se caberia perguntar o que era ela
antes do nascimento e se o estado em que se achava não constituía uma existência sob forma
qualquer. Não há meio termo: ou a alma existia, ou não existia antes do corpo. Se existia,
qual a sua situação? Tinha, ou não, consciência de si mesma? Se não tinha, é quase como se
não existisse. Se tinha individualidade, era progressiva, ou estacionária? Num e noutro
caso, a que grau chegara ao tomar o corpo? Admitindo, de acordo com a crença vulgar,
que a alma nasce com o corpo, ou, o que vem a ser o mesmo, que, antes de encarnar, só
dispõe de faculdades negativas, perguntamos:
1º Por que mostra a alma
aptidões tão diversas e independentes das idéias que a educação lhe fez adquirir?
2º Donde vem a aptidão
extranormal que muitas crianças em tenra idade revelam, para esta ou aquela arte, para esta ou aquela
ciência, enquanto outras se conservam inferiores ou medíocres durante a vida toda?
3º Donde, em uns, as idéias
inatas ou intuitivas, que noutros não existem?
4º Donde, em certas
crianças, o instituto precoce que revelam para os vícios ou para as virtudes, os
sentimentos inatos de dignidade ou de baixeza, contrastando com o meio em que elas nasceram?
5º Por que, abstraindo-se da
educação, uns homens são mais adiantados do que outros?
6º Por que há selvagens e
homens civilizados? Se tomardes de um menino hotentote recém-nascido e o
educardes nos nossos melhores liceus, fareis dele algum dia um Laplace ou um Newton?
Qual a filosofia ou a
teosofia capaz de resolver estes problemas? É fora de dúvida que, ou as almas são iguais
ao nascerem, ou são desiguais. Se são iguais, por que, entre elas, tão grande diversidade de
aptidões? Dir-se-á que isso depende do organismo. Mas, então, achamo-nos em presença da
mais monstruosa e imoral das doutrinas. O homem seria simples máquina, joguete da
matéria; deixaria de ter a responsabilidade de seus atos, pois que poderia atribuir tudo às
suas imperfeições físicas. Se almas são desiguais, é que Deus as criou assim. Nesse caso,
porém, por que a inata superioridade concedida a algumas?
Corresponderá essa
parcialidade à justiça de Deus e ao amor que Ele consagra igualmente a todas suas criaturas?
Admitamos, ao contrário, uma
série de progressivas existências anteriores para cada alma e tudo se explica. Ao
nascerem, trazem os homens a intuição do que aprenderam antes: São mais ou menos
adiantados, conforme o número de existências que contem, conforme já estejam mais ou
menos afastados do ponto de partida. Dá-se aí exatamente o que se observa numa reunião
de indivíduos de todas as idades, onde cada um terá desenvolvimento proporcionado ao
número de anos que tenha vivido. As existências sucessivas serão, para a vida da alma,
o que os anos são para a do corpo. Reuni, em certo dia, um milheiro de indivíduos de um
a oitenta anos; suponde que um véu encubra todos os dias precedentes ao em que os
reunistes e que, em conseqüência, acreditais que todos nasceram na mesma ocasião.
Perguntareis naturalmente como é que uns são grandes e outros pequenos, uns velhos e
jovens outros, instruídos uns, outros ainda ignorantes. Se, porém, dissipando-se a nuvem que
lhes oculta o passado, vierdes a saber que todos hão vivido mais ou menos tempo, tudo se vos
tornará explicado. Deus, em Sua justiça, não pode ter criado almas desigualmente
perfeitas. Com a pluralidade das existências, a desigualdade que notamos nada mais apresenta
em oposição à mais rigorosa eqüidade: é que apenas vemos o presente e não o passado. A
este raciocínio serve de base algum sistema, alguma suposição gratuita? Não. Partimos de
um fato patente, incontestável: a desigualdade das aptidões e do desenvolvimento intelectual
e moral e verificamos que nenhuma das teorias correntes o explica, ao passo que uma
outra teoria lhe dá explicação simples, natural e lógica. Será racional preferir-se as que
não explicam àquela que explica?
À vista da sexta
interrogação acima, dirão naturalmente que o hotentote é de raça inferior. Perguntaremos,
então, se o hotentote é ou não um homem. Se é, por que a ele e à sua raça privou Deus dos
privilégios concedidos à raça caucásica? Se não é, por que tentar fazê-lo cristão? A Doutrina
Espírita tem mais amplitude do que tudo isto. Segundo ela, não há muitas espécies de
homens, há tão-somente cujos espíritos estão mais ou menos atrasados, porém, todos
suscetíveis de progredir. Não é este princípio mais conforme à justiça de Deus?
Vimos de apreciar a alma com
relação ao seu passado e ao seu presente. Se a considerarmos, tendo em
vista o seu futuro, esbarraremos nas mesmas dificuldades.
1ª Se a nossa existência
atual é que, só ela, decidirá da nossa sorte vindoura, quais, na vida futura, as
posições respectivas do selvagem e do homem civilizado? Estarão no mesmo nível, ou se
acharão distanciados um do outro, no tocante à soma de felicidade eterna que lhes caiba?
2ª O homem que trabalhou
toda a sua vida por melhorar-se, virá a ocupar a mesma categoria de outro que
se conservou em grau inferior de adiantamento, não por culpa sua, mas porque não
teve tempo, nem possibilidade de se tornar melhor?
3ª O que praticou o mal, por
não ter podido instruir-se, será culpado de um estado de coisas cuja
existência em nada dependeu dele?
4ª Trabalha-se continuamente
por esclarecer, moralizar, civilizar os homens.
Mas, em contraposição a um
que fica esclarecido, milhões de outros morrem todos os dias antes que a luz lhes tenha
chegado. Qual a sorte destes últimos? Serão tratados como réprobos? No caso contrário,
que fizeram para ocupar categoria idêntica à dos outros?
5ª Que sorte aguarda os que
morrem na infância, quando ainda não puderam fazer nem o bem, nem o mal?
Se vão para o meio dos eleitos, por que esse favor, sem que coisa alguma hajam feito
para merecê-lo? Em virtude de que privilégio eles se vêem isentos das tribulações da vida?
Haverá alguma doutrina capaz
de resolver esses problemas? Admitam-se as existências consecutivas e
tudo se explicará conformemente à justiça de Deus. O que se não pôde fazer numa existência
faz-se em outra. Assim é que ninguém escapa à lei do progresso, que cada um será
recompensado segundo o seu merecimento real e que ninguém fica excluído da felicidade
suprema, a que todos podem aspirar, quaisquer que sejam os obstáculos com que topem no
caminho.
Essas questões facilmente se
multiplicariam ao infinito, porquanto inúmeros são os problemas psicológicos e
morais que só na pluralidade das existências encontram solução.
Limitamo-nos a formular as
de ordem mais geral. Como quer que seja, alegar-se-á talvez que a Igreja não admite a
doutrina da reencarnação; que ela subverteria a religião. Não temos o intuito de tratar
dessa questão neste momento. Basta-nos o havermos demonstrado que aquela doutrina é
eminentemente moral e racional. Ora, o que é moral e racional não pode estar em oposição a uma
religião que proclama ser Deus a bondade e a razão por excelência. Que teria sido
da religião, se, contra a opinião universal e o testemunho da ciência, se houvesse
obstinadamente recusado a render-se à evidência e expulsado de seu seio todos os que não
acreditassem no movimento do Sol ou nos seis dias da criação? Que crédito houvera merecido e
que autoridade teria tido, entre povos cultos, uma religião fundada em erros manifestos
e que os impusesse como artigos de fé? Logo que a evidência se patenteou, a Igreja,
criteriosamente, se colocou do lado da evidência. Uma vez provado que certas coisas existentes
seriam impossíveis sem a reencarnação, que, a não ser por esse meio, não se consegue
explicar alguns pontos do dogma, cumpre admiti-lo e reconhecer meramente aparente o
antagonismo entre esta doutrina e a dogmática. Mais adiante mostraremos que talvez seja
muito menor do que se pensa a distância que, da doutrina das vidas sucessivas, separa a
religião e que a esta não faria aquela doutrina maior mal do que lhe fizeram as descobertas
do movimento da Terra e dos períodos geológicos, as quais, à primeira vista, pareceram
desmentir os textos sagrados. Demais, o princípio da reencarnação ressalta de
muitas passagens das Escrituras, achando-se especialmente formulado, de modo
explícito, no Evangelho:
“Quando desciam da montanha
(depois da transfiguração), Jesus lhes fez esta recomendação: Não faleis a
ninguém do que acabastes de ver, até que o Filho do homem tenha ressuscitado, dentre
os mortos. Perguntaram-lhe então seus discípulos: Por que dizem os escribas ser preciso que primeiro
venha Elias? Respondeu-lhes Jesus: É certo que Elias há de vir e que restabelecerá todas as
coisas. Mas, eu vos declaro que Elias já veio, e eles não o conheceram e o fizeram
sofrer como entenderam. Do mesmo modo darão a morte ao Filho do homem. Compreenderam
então seus discípulos que era de João Batista que ele lhes falava.” (São Mateus, cap.
XVII.)
Pois que João Batista fora
Elias, houve reencarnação do Espírito ou da alma de Elias no corpo de João Batista. Em suma, como quer que
opinemos acerca da reencarnação, quer a aceitemos, quer não, isso não constituirá
motivo para que deixemos de sofrê-la, desde que ela exista, mau grado a todas as crenças em
contrário. O essencial está em que o ensino dos Espíritos é eminentemente cristão;
apóia-se na imortalidade da alma, nas penas e recompensas futuras, na justiça de Deus, no
livre-arbítrio do homem, na moral do Cristo. Logo, não é antireligioso.
Temos raciocinado,
abstraindo, como dissemos, de qualquer ensinamento espírita que, para certas pessoas,
carece de autoridade. Não é somente porque veio dos Espíritos que nós e tantos outros nos
fizemos adeptos da pluralidade das existências. É porque essa doutrina nos pareceu a mais
lógica e porque só ela resolve questões até então insolúveis.
Ainda quando fosse da
autoria de um simples mortal, tê-la-íamos igualmente adotado e não houvéramos
hesitado um segundo mais em renunciar às idéias que esposávamos. Em sendo
demonstrado o erro, muito mais que perder do que ganhar tem o amor-próprio, com o se
obstinar na sustentação de uma idéia falsa. Assim também, tê-laíamos repelido, mesmo que provindo
dos Espíritos, se nos parecera contrária à razão, como repelimos muitas outras,
pois sabemos, por experiência, que não se deve aceitar cegamente tudo o que venha deles, da
mesma forma que se não deve adotar às cegas tudo o que proceda dos homens. O melhor
título que, ao nosso ver, recomenda a idéia da reencarnação é o
de ser, antes de tudo, lógica. Outro, no entanto, ela apresenta: o de a confirmarem os fatos,
fatos positivos e por bem dizer, materiais, que um estudo atento e criterioso revela a quem
se dê ao trabalho de observar com paciência e perseverança e diante dos quais não há mais
lugar para a dúvida. Quando esses fatos se houverem vulgarizado, como os da
formação e do movimento da Terra, forçoso será que todos se rendam à evidência e os que
se lhes colocaram em oposição ver-se-ão constrangidos a desdizer-se.
Reconheçamos, portanto, em
resumo, que só a doutrina da pluralidade das existências explica o que,
sem ela, se mantém inexplicável; que é altamente consoladora e conforme à mais rigorosa
justiça; que constitui para o homem a âncora de salvação que Deus, por misericórdia, lhe
concedeu.
As próprias palavras de
Jesus não permitem dúvida a tal respeito. Eis o que se lê no Evangelho de São João,
capítulo III:
3. Respondendo a Nicodemos,
disse Jesus: Em verdade, em verdade, te digo que, se um homem não nascer de
novo, não poderá ver o reino de Deus.
4. Disse-lhe Nicodemos: Como
pode um homem nascer já estando velho? Pode tornar ao ventre de sua mãe
para nascer segunda vez?
5. Respondeu Jesus: Em
verdade, em verdade te digo que, se um homem não renascer da água e do
Espírito, não poderá entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne e o que é
nascido do Espírito é Espírito. Não te admires de que eu te tenha dito: é necessário que
torneis a nascer. (Ver, adiante, o parágrafo “Ressurreição da carne”, n° 1010.)
CAPÍTULO VI
DA VIDA ESPÍRITA
1. Espíritos errantes. -
2. Mundos transitórios. - 3. Percepções, sensações e sofrimentos dos Espíritos. - 4.
Ensaio teórico da sensação nos Espíritos. - 5. Escolha das provas. - 6. As relações no
além-túmulo. - 7. Relações de simpatia e de antipatia entre os Espíritos.
- 8. Recordação da existência
corpórea. - 9. Comemoração dos mortos. Funerais.
Espíritos errantes
223. A alma reencarna
logo depois de se haver separado do corpo?
“Algumas vezes reencarna
imediatamente, porém, de ordinário só o faz depois de intervalos mais ou menos
longos. Nos mundos superiores, a reencarnação é quase sempre imediata. Sendo aí menos
grosseira a matéria corporal, o Espírito, quando encarnado nesses mundos, goza quase que de
todas as suas faculdades de Espírito, sendo o seu estado normal o dos sonâmbulos lúcidos
entre vós.”
224. Que é a alma no
intervalo das encarnações? “Espírito errante, que
aspira a novo destino, que espera.”
a) - Quanto podem durar
esses intervalos?
“Desde algumas horas até
alguns milhares de séculos. Propriamente falando, não há extremo limite estabelecido
para o estado de erraticidade, que pode prolongar-se muitíssimo, mas que nunca é
perpétuo. Cedo ou tarde, o Espírito terá que volver a uma existência apropriada a
purificá-lo das máculas de suas existências precedentes.”
b) - Essa duração depende
da vontade do Espírito, ou lhe pode ser imposta como expiação?
“É uma conseqüência do
livre-arbítrio. Os Espíritos sabem perfeitamente o que fazem. Mas, também, para
alguns, constitui uma punição que Deus lhes inflige. Outros pedem que ela se prolongue,
a fim de continuarem estudos que só na condição de Espírito livre podem efetuar-se com
proveito.”
225. A erraticidade é,
por si só, um sinal de inferioridade dos Espíritos?
“Não, porquanto há Espíritos
errantes de todos os graus. A encarnação é um estado transitório, já o dissemos.
O Espírito se acha no seu estado normal, quando liberto da matéria.”
226. Poder-se-á dizer que
são errantes todos os Espíritos que não estão encarnados?
“Sim, com relação aos que
tenham de reencarnar. Não são errantes, porém, os Espíritos puros, os que
chegaram à perfeição. Esses se encontram no seu estado definitivo.”
No tocante às qualidades
íntimas, os Espíritos são de diferentes ordens, ou graus, pelos quais vão passando
sucessivamente, à medida que se purificam. Com relação ao estado em que se acham,
podem ser: encarnados, isto é, ligados a um corpo; errantes,
isto é, sem corpo material e
aguardando nova encarnação para se melhorarem; Espíritos puros, isto é, perfeitos, não
precisando mais de encarnação.
227. De que modo se
instruem os Espíritos errantes? Certo não o fazem do mesmo modo que nós outros?
“Estudam e procuram meios de
elevar-se. Vêem, observam o que ocorre nos lugares aonde vão; ouvem os discursos dos homens doutos e
os conselhos dos Espíritos mais elevados e tudo isso lhes incute idéias que antes não
tinham.”
228. Conservam os
Espíritos algumas de suas paixões humanas?
“Com o invólucro material os
Espíritos elevados deixam as paixões más e só guardam a do bem. Quanto aos
Espíritos inferiores, esses as conservam, pois do contrário pertenceriam à primeira
ordem.”
229. Por que, deixando a
Terra, não deixam aí os Espíritos todas as más paixões, uma vez que lhes
reconhecem os inconvenientes?
“Vês nesse mundo pessoas
excessivamente invejosas. Imaginas que, mal o deixam, perdem esse defeito?
Acompanha os que da Terra partem, sobretudo os que alimentaram paixões bem acentuadas, uma
espécie de atmosfera que os envolve, conservando-lhes o que têm de mau, por não se achar
o Espírito inteiramente desprendido da matéria. Só por momentos ele entrevê a
verdade, que assim lhe aparece como que para mostrar-lhe o bom caminho.”
230. Na erraticidade, o
Espírito progride?
“Pode melhorar-se muito,
tais sejam a vontade e o desejo que tenha de consegui-lo. Todavia, na existência
corporal é que põe em prática as idéias que adquiriu.”
231. São felizes ou
desgraçados os Espíritos errantes?
“Mais ou menos, conforme
seus méritos. Sofrem por efeito das paixões cuja essência conservaram, ou são
felizes, de conformidade com o grau de desmaterialização a que hajam chegado. Na
erraticidade, o Espírito percebe o que lhe falta para ser mais feliz e, desde então, procura os
meios de alcançá-lo. Nem sempre, porém, é permitido reencarnar como fora de seu agrado,
representando isso, para ele, uma punição.”
232. Podem os Espíritos
errantes ir a todos os mundos?
“Conforme. Pelo simples fato
de haver deixado o corpo, o Espírito não se acha completamente desprendido da
matéria e continua a pertencer ao mundo onde acabou de viver, ou a outro do mesmo
grau, a menos que, durante a vida, se tenha elevado, o que, aliás, constitui o objetivo
para que devem tender seus esforços, pois, do contrário, nunca se aperfeiçoaria. Pode, no
entanto, ir a alguns mundos superiores, mas na qualidade de estrangeiro. A bem dizer,
consegue apenas entrevê-los, donde lhe nasce o desejo de melhorar-se, para ser digno
da felicidade de que gozam os que os habitam, para ser digno também de habitá-los mais
tarde.”
233. Os Espíritos já
purificados descem aos mundos inferiores?
“Fazem-no freqüentemente,
com o fim de auxiliar-lhes o progresso. A não ser assim, esses mundos estariam
entregues a si mesmos, sem guias para dirigi-los.”
Mundos transitórios
234. Há, de fato, como já
foi dito, mundos que servem de estações ou pontos de repouso aos Espíritos
errantes?
“Sim, há mundos
particularmente destinados aos seres errantes, mundos que lhes podem servir de habitação
temporária, espécies de bivaques, de campos onde descansem de uma demasiado longa
erraticidade, estado este sempre um tanto penoso. São, entre os outros mundos, posições
intermédias, graduadas de acordo com a natureza dos Espíritos que a elas podem ter acesso
e onde eles gozam de maior ou menor bem-estar.”
a) - Os Espíritos que
habitam esses mundos podem deixá-los livremente?
“Sim, os Espíritos que se
encontram nesses mundos podem deixá-los, a fim de irem para onde devam ir.
Figurai-os como bandos de aves
que pousam numa ilha, para aí aguardarem que se lhes refaçam as forças, a fim de
seguirem seu destino.”
235. Enquanto permanecem
nos mundos transitórios, os Espíritos progridem?
“Certamente. Os que vão a
tais mundos levam o objetivo de se instruírem e de poderem mais facilmente
obter permissão para passar a outros lugares melhores e chegar à perfeição que os eleitos
atingem.”
236. Pela sua natureza
especial, os mundos transitórios se conservam perpetuamente destinados
aos Espíritos errantes?
“Não, a condição deles é
meramente temporária.”
a) - Esses mundos são ao
mesmo tempo habitados por seres corpóreos?
“Não; estéril é neles a
superfície. Os que os habitam de nada precisam.”
b) - É permanente essa
esterilidade e decorre da natureza especial que apresentam?
“Não; são estéreis
transitoriamente.”
c) - Os mundos dessa
categoria carecem então de belezas naturais?
“A Natureza reflete as
belezas da imensidade, que não são menos admiráveis do que aquilo a que dais o nome de
belezas naturais.”
d) - Sendo transitório o
estado de semelhantes mundos, a Terra pertencerá algum dia ao números deles?
“Já pertenceu.”
e) - Em que época?
“Durante a sua formação.”
Nada é inútil em a Natureza;
tudo tem um fim, uma destinação. Em lugar algum há o vazio; tudo é habitado, há vida em toda parte.
Assim, durante a dilatada sucessão dos séculos que passaram antes do aparecimento do homem na
Terra, durante os lentos períodos de transição que as camadas geológicas atestam,
antes mesmo da formação dos primeiros seres orgânicos, naquela massa informe,
naquele árido caos, onde os elementos se achavam em confusão, não havia ausência de vida.
Seres isentos das nossas necessidades, das nossas sensações físicas, lá encontravam
refúgio. Quis Deus que, mesmo assim, ainda imperfeita, a Terra servisse para alguma coisa.
Quem ousaria afirmar que, entre os milhares de mundos que giram na imensidade, um só,
um dos menores, perdido no seio da multidão infinita deles, goza do privilégio exclusivo
de ser povoado? Qual então a utilidade dos demais? Tê-los-ia Deus feito unicamente para
nos recrearem a vista? Suposição absurda, incompatível com a sabedoria que esplende em
todas as suas obras e inadmissível desde que ponderemos na existência de todos os que
não podemos perceber. Ninguém contestará que, nesta idéia da existência de mundos ainda
impróprios para a vida material e, não obstante, já povoados de seres vivos apropriados a
tal meio, há qualquer coisa de grande e sublime, em que talvez se encontre a solução de mais
de um problema.
Percepções, sensações e
sofrimentos dos Espíritos
237. Uma vez de volta ao
mundo dos Espíritos, conserva a alma as percepções que tinha na Terra?
“Sim, além de outras de que
aí não dispunha, porque o corpo, qual véu sobre elas lançado, as obscurecia. A
inteligência é um atributo, que tanto mais livremente se manifesta no Espírito, quanto menos
entraves tenha que vencer.”
238. São ilimitadas as
percepções e os conhecimentos dos Espíritos? Numa palavra: eles sabem tudo?
“Quanto mais se aproximam da
perfeição, tanto mais sabem. Se são Espíritos superiores, sabem muito. Os
Espíritos inferiores são mais ou menos ignorantes acerca de tudo.”
239. Conhecem os
Espíritos o princípio das coisas?
“Conforme a elevação e a
pureza que hajam atingido. Os de ordem inferior não sabem mais do que os
homens.”
240. A duração, os
Espíritos a compreendem como nós?
“Não e daí vem que nem
sempre nos compreendeis, quando se trata de determinar datas ou épocas.”
Os Espíritos vivem fora do
tempo como o compreendemos. A duração, para eles, deixa, por assim dizer, de
existir. Os séculos, para nós tão longos, não passam, aos olhos deles, de instantes que se
movem na eternidade, do mesmo modo que os relevos do solo se apagam e desaparecem para
quem se eleva no espaço.
241. Os Espíritos fazem
do presente mais precisa e exata idéia do que nós?
“Do mesmo modo que aquele,
que vê bem, faz mais exata idéia das coisas do que o cego. Os Espíritos vêem o
que não vedes. Tudo apreciam, pois, diversamente do modo por que o fazeis. Mas, também
isso depende da elevação deles.”
242. Como é que os
Espíritos têm conhecimento do passado? E esse conhecimento lhes é ilimitado?
“O passado, quando com ele
nos ocupamos, é presente. Verifica-se então, precisamente, o que se passa
contigo quando recordas qualquer coisa que te impressionou no curso do teu exílio.
Simplesmente, como já nenhum véu material nos tolda a inteligência, lembramo-nos
mesmo daquilo que se te apagou da memória. Mas, nem tudo os Espíritos sabem, a começar
pela própria criação.”
243. E o futuro, os
Espíritos o conhecem?
“Ainda isto depende da
elevação que tenham conquistado. Muitas vezes, apenas o entrevêem, porém nem
sempre lhes é permitido revelá-lo. Quando o vêem, parece-lhes presente. À medida que se
aproxima de Deus, tanto mais claramente o
Espírito descortina o futuro. Depois da morte, a alma vê e apreende num golpe de vista suas
passadas migrações, mas não pode ver o que Deus lhe reserva.
Para que tal aconteça,
preciso é que, ao cabo de múltiplas existências, se haja integrado nele.”
a) - Os Espíritos que
alcançaram a perfeição absoluta têm conhecimento completo do futuro?
“Completo não se pode dizer,
por isso que só Deus é soberano Senhor e ninguém O pode igualar.”
244. Os Espíritos vêem a
Deus?
“Só os Espíritos superiores
o vêem e compreendem. Os inferiores o sentem e adivinham.”
a) - Quando um Espírito
inferior diz que Deus lhe proíbe ou permite uma coisa, como sabe que isso lhe
vem Dele?
“Ele não vê a Deus, mas
sente a Sua soberania e, quando não deva ser feita alguma coisa ou dita uma palavra,
percebe, como por intuição, a proibição de fazê-la ou dizê-la.
Não tendes vós mesmos
pressentimentos, que se vos afiguram avisos secretos, para fazerdes, ou não, isto ou
aquilo? O mesmo nos acontece, se bem que em grau mais alto, pois compreendes que, sendo
mais sutil do que as vossas a essência dos Espíritos, podem estes receber melhor as
advertências divinas.”
b) - Deus transmite
diretamente a ordem ao Espírito, ou por intermédio de outros Espíritos?
“Ela não lhe vem direta de
Deus. Para se comunicar com Deus, é-lhe necessário ser digno. Deus lhe transmite
suas ordens por intermédio dos Espíritos imediatamente superiores em perfeição e
instrução.”
245. O Espírito tem
circunscrita a visão como os seres corpóreos?
“Não, ela reside em todo
ele.”
246. Precisam da luz para
ver?
“Vêem por si mesmos, sem
precisarem de luz exterior. Para os Espíritos, não há trevas, salvo as em que
podem achar-se por expiação.”
247. Para verem o que se
passa em dois pontos diferentes, precisam transporta-se a esses pontos? Podem, por
exemplo, ver simultaneamente nos dois hemisférios do globo?
“Como o Espírito se
transporta aonde queira, com a rapidez do pensamento, pode-se dizer que vê em toda parte
ao mesmo tempo. Seu pensamento é suscetível de irradiar, dirigindo-se a um tempo para
muitos pontos diferentes, mas esta faculdade depende da sua pureza. Quanto menos puro é
o Espírito, tanto mais limitada tem a visão. Só os Espíritos superiores podem com a vista
abranger um conjunto.”
No Espírito, a faculdade de
ver é uma propriedade inerente à sua natureza e que reside em todo o seu ser,
como a luz reside em todas as partes de um corpo luminoso. É uma espécie de lucidez
universal que se estende a tudo, que abrange simultaneamente o espaço, os tempos e as
coisas, lucidez para a qual não há trevas, nem obstáculos materiais.
Compreende-se que deva ser
assim. No homem, a visão se dá pelo funcionamento de um órgão que a luz impressiona.
Daí se segue que, não havendo luz, o homem fica na obscuridade. No Espírito,
como a faculdade de ver constitui um atributo seu, abstração feita de qualquer agente exterior,
a visão independe da luz (Veja-se: Ubiqüidade, n° 92.)
248. O Espírito vê as
coisas tão distintamente como nós?
“Mais distintamente, pois
que sua vista penetra onde a vossa não pode penetrar. Nada a obscurece.”
249. Percebe os sons?
“Sim, percebe mesmo sons
imperceptíveis para os vossos sentidos obtusos.”
a) - No Espírito, a
faculdade de ouvir está em todo ele, como a de ver?
“Todas as percepções
constituem atributos do Espírito e lhe são inerentes ao ser. Quando o reveste um corpo
material, elas só lhe chegam pelo conduto dos órgãos. Deixam, porém, de estar localizadas,
em se achando ele na condição de Espírito livre.”
250. Constituindo elas
atributos próprios do Espírito, ser-lhe-á possível subtrair-se às percepções?
“O Espírito unicamente vê e
ouve o que quer. Dizemos isto de um ponto de vista geral e, em particular, com
referência aos Espíritos elevados, porquanto os imperfeitos muitas vezes ouvem e vêem, a
seu mau grado, o que lhes possa ser útil ao aperfeiçoamento.”
251. São sensíveis à
música os Espíritos?
“Aludes à música terrena?
Que é ela comparada à música celeste? A esta harmonia de que nada na Terra vos
pode dar idéia? Uma está para a outra como o canto do selvagem para uma doce melodia. Não
obstante, Espíritos vulgares podem experimentar certo prazer em ouvir a vossa música, por
lhes não ser dado ainda compreenderem outra mais sublime.
A música possui infinitos
encantos para os Espíritos, por terem eles muito desenvolvidas as qualidades sensitivas.
Refiro-me à música celeste, que é tudo o que de mais belo e delicado pode a imaginação espiritual
conceber.”
252. São sensíveis, os
Espíritos, às magnificências da Natureza?
“Tão diferentes são as
belezas naturais dos mundos, que longe estamos de as conhecer. Sim, os Espíritos
são sensíveis a essas belezas, de acordo com as aptidões que tenham para as apreciar e
compreender. Para os Espíritos elevados, há belezas de conjunto que, por assim dizer, apagam
as das particularidades.”
253. Os Espíritos
experimentam as nossas necessidades e sofrimentos físicos?
“Eles os conhecem, porque os
sofreram, não os experimentam, porém, materialmente, como vós
outros: são Espíritos.”
254. E a fadiga, a
necessidade de repouso, experimentam-nas?
“Não podem sentir a fadiga,
como a entendeis; conseguintemente, não precisam de descanso corporal, como vós,
pois que não possuem órgãos cujas forças devam ser reparadas. O Espírito,
entretanto, repousa, no sentido de não estar em constante atividade.
Ele não atua materialmente.
Sua ação é toda intelectual e inteiramente moral o seu repouso.
Quer isto dizer que momentos
há em que o seu pensamento deixa de ser tão ativo quanto de ordinário e não se fixa em
qualquer objeto determinado. É um verdadeiro repouso, mas de nenhum modo comparável ao do
corpo. A espécie de fadiga que os Espíritos são suscetíveis de sentir guarda relação com
a inferioridade deles. Quanto mais elevados sejam, tanto menos precisarão de
repousar.”
255. Quando um Espírito
diz que sofre, de que natureza é seu sofrimento?
“Angústias morais, que o
torturam mais dolorosamente do que todos os sofrimentos físicos.”