O LIVRO DOS ESPÍRITOS - INTRODUÇÃO

AO ESTUDO DA DOUTRINA ESPÍRITA

 

VI

 

Conforme notamos acima, os próprios seres que se comunicam se designam a si mesmos pelo nome de Espíritos ou Gênios, declarando, alguns, pelo menos, terem pertencido a homens que viveram na Terra. Eles compõem o mundo espiritual, como nós constituímos o mundo corporal durante a vida terrena.

Vamos resumir, em poucas palavras, os pontos principais da doutrina que nos transmitiram, a fim de mais facilmente respondermos a certas objeções.

“Deus é eterno, imutável, imaterial, único, onipotente, soberanamente justo e bom.

“Criou o Universo, que abrange todos os seres animados e inanimados, materiais e “imateriais.

“Os seres materiais constituem o mundo visível ou corpóreo, e os seres imateriais, o “mundo invisível ou espírita, isto é, dos Espíritos.

“O mundo espírita é o mundo normal, primitivo, eterno, preexistente e sobrevivente a “tudo.

“O mundo corporal é secundário; poderia deixar de existir, ou não ter jamais “existido, sem que por isso se alterasse a essência do mundo espírita.

“Os Espíritos revestem temporariamente um invólucro material perecível, cuja “destruição pela morte lhes restitui a liberdade.

“Entre as diferentes espécies de seres corpóreo, Deus escolheu a espécie humana “para a encarnação dos Espíritos que chegaram a certo grau de desenvolvimento, dando-lhe “superioridade moral e intelectual sobre as outras.

“A alma é um Espírito encarnado, sendo o corpo apenas o seu envoltório.

“Há no homem três coisas: 1, o corpo ou ser material análogo aos animais e “animado pelo mesmo princípio vital; 2, a alma ou ser imaterial, Espírito encarnado no “corpo; 3, o laço que prende a alma ao corpo, princípio intermediário entre a matéria e o“Espírito.

“Tem assim o homem duas naturezas: pelo corpo, participa da natureza dos animais, cujos “instintos lhe são comuns; pela alma, participa da natureza dos Espíritos.

“O laço ou perispírito, que prende ao corpo o Espírito, é uma espécie de envoltório “semimaterial. A morte é a destruição do invólucro mais grosseiro. O Espírito conserva o “segundo, que lhe constitui um corpo etéreo, invisível para nós no estado normal, porém que “pode tornar-se acidentalmente visível e mesmo tangível, como sucede no fenômeno das “aparições.

“O Espírito não é, pois, um ser abstrato, indefinido, só possível de conceber-se pelo “pensamento. É um ser real, circunscrito, que, em certos casos, se torna apreciável pela vista, pelo ouvido e pelo tato.

“Os Espíritos pertencem a diferentes classes e não são iguais, nem em poder, nem em “inteligência, nem em saber, nem em moralidade. Os da primeira ordem são os Espíritos“superiores, que se distinguem dos outros pela sua perfeição, seus conhecimentos, sua “proximidade de Deus, pela pureza de seus sentimentos e por seu amor do bem: são os anjos “ou puros Espíritos. Os das outras classes se acham cada vez mais distanciados dessa “perfeição, mostrando-se os das categorias inferiores, na sua maioria eivados das nossas “paixões: o ódio, a inveja, o ciúme, o orgulho, etc. Comprazem-se no mal. Há também, entre “os inferiores, os que não são nem muito bons nem muito mais, antes perturbadores e “enredadores, do que perversos. A malícia e as inconseqüências parecem ser o que neles “predomina. São os Espíritos estúrdios ou levianos.

“Os Espíritos não ocupam perpetuamente a mesma categoria. Todos se melhoram “passando pelos diferentes graus da hierarquia espírita. Esta melhora se efetua por meio da “encarnação, que é imposta a uns como expiação, a outros como missão. A vida material é “uma prova que lhes cumpre sofrer repetidamente, até que hajam atingido a absoluta “perfeição moral.

“Deixando o corpo, a alma volve ao mundo dos Espíritos, donde saíra, para passar “por nova existência material, após um lapso de tempo mais ou menos longo, durante o qual “permanece em estado de Espírito errante. (1)

“Tendo o Espírito que passar por muitas encarnações, segue-se que todos nós temos tido “muitas existências e que teremos ainda outras, mais ou menos aperfeiçoadas, quer na Terra, “quer em outros mundos. A encarnação dos Espíritos se dá sempre na espécie humana; seria erro acreditar-se que a alma ou Espírito possa encarnar no corpo de um animal. As diferentes existências corpóreas do Espírito são sempre progressivas e nunca “regressivas; mas, a rapidez do seu progresso depende dos esforços que faça para chegar à “perfeição.

“As qualidades da alma são as do Espírito que está encarnado em nós; assim, o “homem de bem é a encarnação de um bom Espírito, o homem perverso a de um Espírito impuro.

“A alma possuía sua individualidade antes de encarnar; conserva-a depois de se “haver separado do corpo.

“Na sua volta ao mundo dos Espíritos, encontra ela todos aqueles que conhecera na “Terra, e todas as suas existências anteriores se lhe desenham na memória, com a lembrança “de todo bem e de todo mal que fez.

“O Espírito encarnado se acha sob a influência da matéria; o homem que vence esta “influência, pela elevação e depuração de sua alma, se aproxima dos bons Espíritos, em cuja “companhia um dia estará. Aquele que se deixa dominar pelas más paixões, e põe todas as “suas alegrias na satisfação dos apetites grosseiros, se aproxima dos Espíritos impuros, “dando preponderância à sua natureza animal.

“Os Espíritos encarnados habitam os diferentes globos do Universo.

“Os não encarnados ou errantes não ocupam uma região determinada e circunscrita; “estão por toda parte no espaço e ao nosso lado, vendo-nos e acotovelando-nos de contínuo.

“É toda uma população invisível, a mover-se em torno de nós.

“Os Espíritos exercem incessante ação sobre o mundo moral e mesmo sobre o mundo “físico. Atuam sobre a matéria e sobre o pensamento e constituem uma das potências da “Natureza, causa eficiente de uma multidão de fenômenos até então inexplicados ou mal explicados e que não encontram explicação racional senão no Espiritismo.

“As relações dos Espíritos com os homens são constantes. Os bons Espíritos nos “atraem para o bem, nos sustentam nas provas da vida e nos ajudam a suportá-las com “coragem e resignação. Os maus nos impelem para o mal: é-lhes um gozo ver-nos e “assemelhar-nos a eles.

“As comunicações dos Espíritos com os homens são ocultas ou ostensivas. As “ocultas se verificam pela influência boa ou má que exercem sobre nós, à nossa revelia.

“Cabe ao nosso juízo discernir as boas das más inspirações. As comunicações ostensivas se dão por meio da escrita, da palavra ou de outras manifestações materiais, quase sempre pelos médiuns que lhes servem de instrumentos.

“Os Espíritos se manifestam espontaneamente ou mediante evocação.

“Podem evocar-se todos os Espíritos: os que animaram homens obscuros, como os “das personagens mais ilustres, seja qual for a época em que tenham vivido; os de nossos parentes, amigos, ou inimigos, e obter-se deles, por comunicações escritas ou verbais, conselhos, informações sobre a situação em que se encontram no Além, sobre o que pensam a nosso respeito, assim como as revelações que lhes sejam permitidas fazer-nos.

“Os Espíritos são atraídos na razão da simpatia que lhes inspire a natureza moral do “meio que os evoca. Os Espíritos superiores se comprazem nas reuniões sérias, onde “predominam o amor do bem e o desejo sincero, por parte dos que as compõem, de se “instruírem e melhorarem. A presença deles afasta os Espíritos inferiores que, inversamente, “encontram livre acesso e podem obrar com toda a liberdade entre pessoas rívolas ou “impelidas unicamente pela curiosidade e onde quer que existam maus instintos.Longe de se “obterem bons conselhos, ou informações úteis, deles só se devem esperar utilidades, “mentiras, gracejos de mau gosto, ou mistificações, pois que muitas vezes tomam nomes “venerados, a fim de melhor induzirem ao erro.

“Distinguir os bons dos maus Espíritos é extremamente fácil. Os Espíritos superiores “usam constantemente de linguagem digna, nobre, repassada da mais alta moralidade, “escoimada de qualquer paixão inferior; a mais pura sabedoria lhes transparece dos “conselhos, que objetivam sempre o nosso melhoramento e o bem da Humanidade. A dos “Espíritos inferiores, ao contrário, é inconseqüente, amiúde trivial e até grosseira. Se, por “vezes, dizem alguma coisa boa e verdadeira, muito mais vezes dizem falsidades e absurdos, “por malícia ou ignorância. Zombam da credulidade dos homens e se divertem à custa dos “que os interrogam, lisonjeando-lhes a vaidade, alimentando-lhes os desejos com falazes esperanças. Em resumo, as comunicações sérias, na “mais ampla acepção do termo, só são dadas nos centros sérios, onde intima comunhão de “pensamentos, tendo em vista o bem.

“A moral dos Espíritos superiores se resume, como a do Cristo, nesta máxima “evangélica: Fazer aos outros o que quereríamos que os outros nos fizessem, isto é, fazer o “bem e não o mal. Neste princípio encontra o homem uma regra universal de proceder, “mesmo para as suas menores ações.

“Ensinam-nos que o egoísmo, o orgulho, a sensualidade são paixões que nos “aproximam da natureza animal, prendendo-nos à matéria; que o homem que, já neste mundo, “se desliga da matéria, desprezando as futilidades mundanas e amando o próximo, se “avizinha da natureza espiritual; que cada um deve tornar-se útil, de acordo com as “faculdades e os meios que Deus lhe pôs nas mãos para experimentá-lo; que o Forte e o “Poderoso devem amparo e proteção ao Fraco, porquanto transgride a Lei de Deus aquele “que abusa da força e do poder para oprimir o seu semelhante. Ensinam, finalmente, que, no mundo dos Espíritos, nada podendo estar oculto, o hipócrita será desmascarado e patenteadas todas as suas torpezas, que a presença inevitável, e de todos os instantes,“daqueles para com quem houvermos procedido mal constitui um dos castigos que nos estão “reservados; que ao estado de inferioridade e superioridade dos Espíritos correspondem “penas e gozos desconhecidos na Terra.

“Mas, ensinam também não haver faltas irremissíveis, que a expiação não possa “apagar. Meio de consegui-lo encontra o homem nas diferentes existências que lhe permitem “avançar, conformemente aos seus desejos e esforços, na senda do progresso, para a “perfeição, que é o seu destino final.”

Este o resumo da Doutrina Espírita, como resulta dos ensinamentos dados pelos Espíritos superiores. Vejamos agora as objeções que se lhe contrapõem.

 

VII

 

Para muita gente, a oposição das corporações científicas constitui, senão uma prova, pelo menos forte presunção contra o que quer que seja. Não somos dos que se insurgem contra os sábios, pois não queremos dar azo a que de nós digam que escouceamos. Temo-los, ao contrário, em grande apreço e muito honrado nos julgaríamos se fôssemos conta do entre eles. Suas opiniões, porém, não podem representar, em todas as circunstâncias, uma sentença irrevogável.

Desde que a Ciência sai da observação material dos fatos, em se tratando de os apreciar e explicar, o campo está aberto às conjeturas. Cada um arquiteta o seu sistemazinho, disposto a sustentá-lo com fervor, para fazê-lo prevalecer. Não vemos todos os dias as mais opostas opiniões serem alternativamente preconizadas e rejeitadas, ora repelidas como erros absurdos, para logo depois aparecerem proclamadas como verdades incontestáveis? Os fatos, eis o verdadeiro critério dos nossos juízos, o argumento sem réplica. Na ausência dos fatos, a dúvida se justifica no homem ponderado.

Com relação às coisas notórias, a opinião dos sábios é, com toda razão, fidedigna, porquanto eles sabem mais e melhor do que o vulgo. Mas, no tocante a princípios novos, a coisas desconhecidas, essa opinião quase nunca é mais do que hipotética, por isso que eles não se acham, menos que os outros, sujeitos a preconceitos. Direi mesmo que o sábio tem mais prejuízos que qualquer outro, porque uma propensão natural o leva a subordinar tudo ao ponto de vista donde mais aprofundou os seus conhecimentos: o matemático não vê prova senão numa demonstração algébrica, o químico refere tudo à ação dos elementos, etc.

Aquele que se fez especialista prende todas as suas idéias à especialidade que adotou. Tirai- o daí e o vereis quase sempre desarrazoar, por querer submeter tudo ao mesmo cadinho:conseqüência da fraqueza humana. Assim, pois, consultarei, do melhor grado e com a maior confiança, um químico sobre uma questão de análise, um físico sobre a potência elétrica, um mecânico sobre uma força motriz. Hão de eles, porém, permitir-me, sem que isto afete a estima a que lhes dá direito o seu saber especial, que eu não tenha em melhor conta suas opiniões negativas acerca do Espiritismo, do que o parecer de um arquiteto sobre uma questão de música.

As ciências ordinárias assentam nas propriedades da matéria, que se pode experimentar e manipular livremente; os fenômenos espíritas repousam na ação de inteligências dotadas de vontade própria e que nos provam a cada instante não se acharem subordinadas aos nossos caprichos. As observações não podem, portanto, ser feitas da mesma forma; requerem condições especiais e outro ponto de partida. Querer submetê-las aos processos comuns de investigação é estabelecer analogias que não existem. A Ciência,propriamente dita, é, pois, como ciência, incompetente para se pronunciar na questão do Espiritismo: não tem que se ocupar com isso e qualquer que seja o seu julgamento, favorável ou não, nenhum peso poderá ter. O Espiritismo é o resultado de uma convicção pessoal, que os sábios, como indivíduos, podem adquirir, abstração feita da qualidade de sábios. Pretender deferir a questão à Ciência equivaleria a querer que a existência ou não da alma fosse decidida por uma assembléia de físicos ou de astrônomos. Com efeito, o Espiritismo está todo na existência da alma e no seu estado depois da morte. Ora, é soberanamente ilógico imaginar-se que um homem deva ser grande psicologista, porque é eminente matemático ou notável anatomista. Dissecando o corpo humano, o anatomista procura a alma e, porque não a encontra, debaixo do seu escalpelo,como encontra um nervo, ou porque não a vê evolar-se como um gás, conclui que ela não existe, colocado num ponto de vista exclusivamente material. Segue-se que tenha razão contra a opinião universal? Não. Vedes, portanto, que o Espiritismo não é da alçada da Ciência.

Quando as crenças espíritas se houverem vulgarizado, quando estiverem aceitas pelas massas humanas (e, a julgar pela rapidez com que se propagam, esse tempo não vem longe), com elas se dará o que tem acontecido a todas as idéias novas que hão encontrado oposição: os sábios se renderão à evidência. Lá chegarão, individualmente, pela força das coisas. Até então será intempestivo desviá-los de seus trabalhos especiais, para obrigá-los a se ocuparem com um assunto estranho, que não lhes está nem nas atribuições, nem no programa. Enquanto isso não se verifica, os que, sem estudo prévio e aprofundado da matéria, se pronunciam pela negativa e escarnecem de quem não lhes subscreve o conceito,esquecem que o mesmo se deu com a maior parte das grandes descobertas que fazem honra à Humanidade. Expõem-se a ver seus nomes alongando a lista dos ilustres proscritores das idéias novas e inscritos a par dos membros da douta assembléia que, em 1752, acolheu com retumbante gargalhada a memória de Franklin sobre os pára-raios, julgando-a indigna de figurar entre as comunicações que lhe eram dirigidas; e dos daquela outra que ocasionou perder a França as vantagens da iniciativa da marinha a vapor, declarando o sistema de Fulton um sonho irrealizável. Entretanto, essas eram questões da alçada daquelas corporações. Ora, se tais assembléias, que contavam em seu seio a nata dos sábios do mundo, só tiveram a zombaria e o sarcasmo para idéias que elas não percebiam, idéias que, alguns anos mais tarde, revolucionaram a ciência, os costumes e a indústria, como esperar que uma questão, alheia aos trabalhos que lhes são habituais, alcance hoje das suas congêneres melhor acolhimento?

Esses erros de alguns homens eminentes, se bem que deploráveis, atenta a memória deles, de nenhum modo poderiam privá-los dos títulos que a outros respeitos conquistaram à nossa estima; mas, será precisa a posse de um diploma oficial para se ter bom-senso? Dar-se-á que fora das cátedras acadêmicas só se encontrem tolos e imbecis? Dignem-se de lançar os olhos para os adeptos da Doutrina Espírita e digam se só com ignorantes deparam e se a imensa legião de homens de mérito que a têm abraçado autoriza seja ela atirada ao rol das crendices de simplórios. O caráter e o saber desses homens dão peso a esta proposição: pois que eles afirmam, forçoso é reconhecer que alguma coisa há.

Repetimos mais uma vez que, se os fatos a que aludimos se houvessem reduzido ao movimento mecânico dos corpos, a indagação da causa física desse fenômeno caberia no domínio da Ciência; porém, desde que se trata de uma manifestação que se produz com exclusão das leis da Humanidade, ela escapa à competência da ciência material, visto não poder explicar-se por algarismos, nem por uma força mecânica. Quando surge um fato novo, que não guarda relação com alguma ciência conhecida, o sábio, para estudá-lo, tem que abstrair na sua ciência e dizer a si mesmo que o que se lhe oferece constitui um estudo novo, impossível de ser feito com idéias preconcebidas.

O homem que julga infalível a sua razão está bem perto do erro. Mesmo aqueles, cujas idéias são as mais falsas, se apóiam na sua própria razão e é por isso que rejeitam tudo o que lhes parece impossível. Os que outrora repeliram as admiráveis descobertas de que a Humanidade se honra, todos endereçavam seus apelos a esse juiz, para repeli-las. O que se chama razão não é muitas vezes senão orgulho disfarçado e quem quer que se considere infalível apresenta-se como igual a Deus. Dirigimo-nos, pois, aos ponderados, que duvidam do que não viram, mas que, julgando do futuro pelo passado, não crêem que o homem haja chegado ao apogeu nem que a Natureza lhe tenha facultado ler a última página do seu livro.

 

VIII

 

Acrescentemos que o estudo de uma doutrina, qual a Doutrina Espírita, que nos lança de súbito numa ordem de coisas tão nova quão grande, só pode ser feito com utilidade por homens sérios, perseverantes, livres de prevenções e animados de firme e sincera vontade de chegar a um resultado. Não sabemos como dar esses qualificativos aos que julgam a priori, levianamente, sem tudo ter visto; que não imprimem a seus estudos a continuidade, a regularidade e o recolhimento indispensáveis. Ainda menos saberíamos dá-los a alguns que, para não decaírem da reputação de homens de espírito, se afadigam por achar um lado burlesco nas coisas mais verdadeiras, ou tidas como tais por pessoas cujo saber, caráter e convicções lhes dão direito à consideração de quem quer que se preze de bem-educado.

Abstenham-se, portanto, os que entendem não serem dignos de sua atenção os fatos.

Ninguém pensa em lhes violentar a crença; concordem, pois, em respeitar a dos outros.

O que caracteriza um estudo sério é a continuidade que se lhe dá. Será de admirar que muitas vezes não se obtenha nenhuma resposta sensata a questões de si mesmas graves, quando propostas ao acaso e à queima-roupa, em meio de uma aluvião de outras extravagantes? Demais, sucede freqüentemente que, por complexa, uma questão, para ser elucidada, exige a solução de outras preliminares ou complementares. Quem deseje tornar-se versado numa ciência tem que a estudar metodicamente, começando pelo princípio e acompanhando o encadeamento e o desenvolvimento das idéias. Que adiantará aquele que, ao acaso, dirigir a um sábio perguntas acerca de uma ciência cujas primeiras palavras ignore? Poderá o próprio sábio, por maior que seja a sua boa-vontade, dar-lhe resposta satisfatória? A resposta isolada, que der, será forçosamente incompleta e quase sempre por isso mesmo, ininteligível, ou parecerá absurda e contraditória. O mesmo ocorre em nossas relações com os Espíritos. Quem quiser com eles instruir-se tem que com eles fazer um curso; mas, exatamente como se procede entre nós deverá escolher seus professores e trabalhar com assiduidade.

Dissemos que os Espíritos superiores somente às sessões sérias acorrem, sobretudo às em que reina perfeita comunhão de pensamentos e de sentimentos para o bem. A leviandade e as questões ociosas os afastam, como, entre os homens, afastam as pessoas criteriosas; o campo fica, então, livre à turba dos Espíritos mentirosos e frívolos, sempre à espreita de ocasiões propícias para zombarem de nós e se divertirem à nossa custa. Que é o que se dará com uma questão grave em reuniões de tal ordem? Será respondida; mas, por quem? Acontece como se a um bando de levianos, que estejam a divertir-se, propusésseis estas questões: Que é a alma? Que é a morte? e outras tão recreativas quanto essas. Se quereis respostas sisudas, haveis de comportar-vos com toda a sisudeza, na mais ampla acepção do termo, e de preencher todas as condições reclamadas. Só assim obtereis grandes coisas. Sede, além do mais, laboriosos e perseverantes nos vossos estudos, sem o que os Espíritos superiores vos abandonarão, como faz um professor com os discípulos negligentes.

 

IX

 

O movimento dos objetos é um fato incontestável. A questão está em saber se, nesse movimento, há ou não uma manifestação inteligente e, em caso de afirmativa, qual a origem essa manifestação.

Não falamos do movimento inteligente de certos objetos, nem das comunicações verbais, nem das que o médium escreve diretamente. Este gênero de manifestações, evidente para os que viram e aprofundaram o assunto, não se mostra, à primeira vista, bastante independente da vontade, para firmar a convicção de um observador novato. Não rataremos, portanto, senão da escrita obtida com o auxílio de um objeto qualquer munido de um lápis, como cesta, prancheta, etc. A maneira pela qual os dedos do médium repousam sobre os objetos desafia, como atrás dissemos, a mais consumada destreza de sua parte no intervir, de qualquer modo, em o traçar das letras. Mas admitamos que a alguém, dotado de maravilhosa habilidade, seja isso possível e que esse alguém consiga iludir o olhar do observador; como explicar a natureza das respostas, quando se apresentam fora do quadro das idéias e conhecimentos do médium? E note-se que não se trata de respostas monossilábicas, porém, muitas vezes, de numerosas páginas escritas com admirável rapidez, quer espontaneamente, quer sobre determinado assunto. De sob os dedos do médium menos versado em literatura, surgem de quando em quando poesias de impecáveis sublimidade e pureza, que os melhores poetas humanos não se dignariam de subscrever.

O que ainda torna mais estranhos esses fatos é que ocorrem por toda parte e que os médiuns se multiplicam ao infinito. São eles reais ou não? Para esta pergunta só temos uma resposta:vede e observai; não vos faltarão ocasiões de fazê-lo; mas, sobretudo, observai repetidamente, por longo tempo e de acordo com as condições exigidas.

Que respondem a essa evidência os antagonistas? - Sois vítimas do charlatanismo ou joguete de uma ilusão. Diremos, primeiramente, que a palavra charlatanismo não cabe onde não há proveito. Os charlatães não fazem grátis o seu ofício. Seria, quando muito, uma mistificação. Mas, por que singular coincidência esses mistificadores se achariam acordes, de um extremo a outro do mundo, para proceder do mesmo modo, produzir os mesmos efeitos e dar, sobre os mesmos assuntos e em línguas diversas, respostas idênticas, senão quanto à forma, pelo menos quanto ao sentido? Como compreender-se que pessoas austeras, honradas, instruídas se prestassem a tais manejos? E com que fim? Como achar em crianças a paciência e a habilidade necessárias a tais resultados? Porque, se os médiuns não são instrumentos passivos, indispensáveis se lhes fazem habilidade e conhecimentos incompatíveis com a idade infantil e com certas posições sociais.

Dizem então que, se não há fraude, pode haver ilusão de ambos os lados. Em boa lógica, a qualidade das testemunhas é de alguma importância. Ora, é aqui o caso de perguntarmos se a Doutrina Espírita, que já conta milhões de adeptos, só os recruta entre os ignorantes? Os fenômenos em que ela se baseia são tão extraordinários que concebemos a existência da dúvida. O que, porém, não podemos admitir é a pretensão de alguns incrédulos, a de terem o monopólio do bom-senso, e que, sem guardarem as conveniências e respeitarem o valor moral de seus adversários, tachem, com desplante, de ineptos os que lhes não seguem o parecer. Aos olhos de qualquer pessoa judiciosa, a opinião das que, esclarecidas, observaram durante muito tempo, estudaram e meditaram uma coisa, constituirá sempre, quando não uma prova, uma presunção, no mínimo, a seu favor, visto ter logrado prender a atenção de homens respeitáveis, que não tinham interesse algum em propagar erros nem tempo a perder com futilidades.

 

X

 

Entre as objeções, algumas há das mais especiosas, ao menos na aparência, porque tiradas da observação e feitas por pessoas respeitáveis.

A uma delas serve de base a linguagem de certos Espíritos, que não parece digna da elevação atribuída a seres sobrenaturais. Quem se reportar ao resumo da doutrina acima apresentado, verá que os próprios Espíritos nos ensinam não haver entre eles igualdade de conhecimentos nem de qualidades morais, e que não se deve tomar ao pé da letra tudo quanto dizem. Às pessoas sensatas incumbe separar o bom do mau. Indubitavelmente, os que desse fato deduzem que só se comunicam conosco seres malfazejos, cuja única ocupação consista em nos mistificar, não conhecem as comunicações que se recebem nas reuniões onde só se manifestam Espíritos superiores; do contrário, assim não pensariam. É de lamentar que o acaso os tenha servido tão mal, que apenas lhes haja mostrado o lado mau do mundo espírita, pois nos repugna supor que uma tendência simpática atraia para eles, em vez dos bons Espíritos, os maus, os mentirosos, ou aqueles cuja linguagem é de revoltante grosseria. Poder-se-ia,quando muito, deduzir daí que a solidez dos princípios dessas pessoas não é bastante forte para preservá-las do mal e que, achando certo prazer em lhes satisfazerem a curiosidade, os maus Espíritos disso se aproveitam para se aproximar delas, enquanto os bons se afastam.Julgar a questão dos Espíritos por esses fatos seria tão pouco lógico, quanto julgar do caráter de um povo pelo que se diz e faz numa reunião de desatinados ou de gente de mánota, com os quais não entretêm relações as pessoas circunspectas nem as sensatas. Os que assim julgam se colocam na situação do estrangeiro que, chegando a uma grande capital pelo mais abjeto dos seus arrabaldes, julgasse de todos os habitantes pelos costumes e linguagem desse bairro ínfimo. No mundo dos Espíritos também há uma sociedade boa e uma sociedade má; dignem-se, os que daquele modo se pronunciam, de estudar o que se passa entre os Espíritos de escol e se convencerão de que a cidade celeste não contém apenas a escória popular.

Perguntam eles: os Espíritos de escol descem até nós? Responderemos: Não fiqueis no subúrbio; vede, observai e julgareis; os fatos aí estão para todo o mundo. A menos que lhes sejam aplicáveis estas palavras de Jesus: Têm olhos e não vêem; têm ouvidos e não ouvem.

Como variante dessa opinião, temos a dos que não vêem, nas comunicações espíritas e em todos os fatos materiais a que elas dão lugar, mais do que a intervenção de uma potência diabólica, novo Proteu que revestiria todas as formas, para melhor nos enganar. Não a julgamos suscetível de exame sério, por isso não nos demoramos em considerá-la. Aliás, ela está refutada pelo que acabamos de dizer. Acrescentaremos, tão-somente, que, se assim fosse, forçoso seria convir em que o diabo é às vezes bastante criterioso e ponderado, sobretudo muito moral; ou então, em que também há bons diabos.

Efetivamente, como acreditar que Deus só ao Espírito do mal permita que se manifeste, para perder-nos, sem nos dar por contrapeso os conselhos dos bons Espíritos? Se Ele não o pode fazer, não é onipotente; se pode e não o faz, desmente a Sua bondade. Ambas as suposições seriam blasfemas. Note-se que admitir a comunicação dos maus Espíritos é reconhecer o princípio das manifestações. Ora, se elas se dão, não pode deixar de ser com a permissão de Deus. Como, então, se há de acreditar, sem impiedade, que Ele só permita o mal, com exclusão do bem? Semelhante doutrina é contrária às mais simples noções do bom-senso e da Religião.

 

XI

 

Esquisito é, acrescentam, que só se fale dos Espíritos de personagens conhecidas e perguntam por que são eles os únicos a se manifestarem. Há ainda aqui um erro, oriundo, como tantos outros, de superficial observação. Dentre os Espíritos que vêm espontaneamente, muito maior é, para nós, o número dos desconhecidos do que o dos ilustres, designando-se aqueles por um nome qualquer, muitas vezes por um nome alegórico ou característico. Quanto aos que se evocam, desde que não se trate de parente ou amigo, é muito natural nos dirijamos aos que conhecemos, de preferência a chamar pelos que nos são desconhecidos. O nome das personagens ilustres atrai mais a atenção, por isso é que são notadas.

Acham também singular que os Espíritos dos homens eminentes acudam familiarmente ao nosso chamado e se ocupem, às vezes, com coisas insignificantes, comparadas com as de que cogitavam durante a vida. Nada aí há de surpreendente para os que sabem que a autoridade, ou a consideração de que tais homens gozaram neste mundo, nenhuma supremacia lhes dá no mundo espírita. Nisto, os Espíritos confirmam estas palavras do Evangelho: “Os grandes serão rebaixados e os pequenos serão elevados”, devendo esta sentença entender-se com relação à categoria em que cada um de nós se achará entre eles. É assim que aqueles que foi primeiro na Terra pode vir a ser lá um dos últimos. Aquele diante de quem curvávamos aqui a cabeça pode, portanto, vir falar-nos como o mais humilde operário, pois que deixou,com a vida terrena, toda a sua grandeza, e o mais poderoso monarca pode achar-se lá muito abaixo do último dos seus soldados.

 

XII

 

Um fato demonstrado pela observação e confirmado pelos próprios Espíritos é o de que os Espíritos inferiores muitas vezes usurpam nomes conhecidos e respeitados. Quem pode, pois, afirmar que os que dizem ter sido, por exemplo, Sócrates, Júlio César, Carlos Magno, Fénelon, Napoleão, Washington, etc., tenham realmente animado essas personagens? Esta dúvida existe mesmo entre alguns adeptos fervorosos da Doutrina Espírita, os quais admitem a intervenção e a manifestação dos Espíritos, mas inquirem como se lhes pode comprovar a identidade. Semelhante prova é, de fato, bem difícil de produzir-se. Conquanto, porém, não o possa ser de modo tão autêntico como por uma certidão de registro civil, pode-o ao menos por presunção, segundo certos indícios.

Quando se manifesta o Espírito de alguém que conhecemos pessoalmente, de um parente ou de um amigo, por exemplo, mormente se há pouco tempo que morreu, sucede geralmente que sua linguagem se revela de perfeito acordo com o caráter que tinha aos nossos olhos, quando vivo. Já isso constitui indício de identidade. Não mais, entretanto, há lugar para dúvidas, desde que o Espírito fala de coisas particulares, lembra acontecimentos de família, sabidos unicamente do seu interlocutor. Um filho não se enganará, decerto, com a linguagem de seu pai ou de sua mãe, nem pais haverá que se equivoquem quanto à de um filho. Neste gênero de evocações, passam-se às vezes coisas íntimas verdadeiramente empolgantes, de natureza a convencerem o maior incrédulo. O mais obstinado céptico fica, não raro, aterrado com as inesperadas revelações que lhe são feitas.

Outra circunstância muito característica acode em apoio da identidade. Dissemos que a caligrafia do médium muda, em geral, quando outro passa a ser o Espírito evocado e que a caligrafia é sempre a mesma quando o mesmo Espírito se apresenta. Tem-se verificado inúmeras vezes, sobretudo se se trata de pessoas mortas recentemente, que a escrita denota flagrante semelhança com a dessa pessoa em vida. Assinaturas se hão obtido de exatidão perfeita. Longe estamos, todavia, de querer apontar esse fato como regra e menos ainda como regra constante. Mencionamo-lo apenas como digna de nota.

Só os Espíritos que atingiram certo grau de purificação se acham libertos de toda influência corporal. Quando ainda não estão completamente desmaterializados (é a expressão de que usam) conservam a maior parte das idéias, dos pensadores e até das manias que tinham na Terra, o que também constitui um meio de reconhecimento, ao qual igualmente, se chega por uma imensidade de fatos minuciosos, que só uma observação acurada e detida pode revelar. Vêem-se escritores a discutir suas próprias obras ou doutrinas, a aprovar ou condenar certas partes delas; outros a lembrar circunstâncias ignoradas, ou quase desconhecidas de suas vidas ou de suas mortes, toda sorte de particularidades, enfim, que são, quando nada, provas morais de identidade, únicas invocáveis, tratando-se de coisas abstratas.

Ora, se a identidade de um Espírito evocado pode, até certo ponto, ser estabelecida em alguns casos, razão não há para que não o seja em outros; e se, com relação a pessoas, cuja morte data de muito tempo, não se têm os mesmos meios de verificação, resta sempre o da linguagem e do caráter, porquanto, inquestionavelmente, o Espírito de um homem de bem não falará como o de um perverso ou de um devasso. Quanto aos Espíritos que se apropriam de nomes respeitáveis, esses se traem logo pela linguagem que empregam e pelas máximas que formulam. Um que se dissesse Fénelon, por exemplo, e que, ainda quando apenas acidentalmente ofendesse o bom-senso e a moral, mostraria, por esse simples fato, o embuste. Se, ao contrário, forem sempre puros os pensamentos que exprima, sem contradições e constantemente à altura do caráter de Fénelon, não há motivo para que se duvide da sua identidade. De outra forma, havíamos de supor que um Espírito que só prega o bem é capaz de mentir conscientemente e, ainda mais, sem utilidade alguma.

A experiência nos ensina que os Espíritos da mesma categoria, do mesmo caráter e possuídos dos mesmos sentimentos formam grupos e famílias. Ora, incalculável é o número dos Espíritos e longe estamos de conhecê-los a todos; a maior parte deles não têm mesmo nomes para nós. Nada, pois, impede que um Espírito da categoria de Fénelon venha em seu lugar, muitas vezes até como seu mandatário. Apresenta-se então com o seu nome, porque lhe é idêntico e pode substituí-lo e ainda porque precisamos de um nome para fixar as nossas idéias. Mas, que importa, afinal, seja um Espírito, realmente ou não, o de Fénelon? Desde que tudo o que ele diz é bom e que fala como o teria feito o próprio Fénelon, é um bom Espírito. Indiferente é o nome pelo qual se dá a conhecer, não passando muitas vezes de um meio de que lança mão para nos fixar as idéias. O mesmo, entretanto, não é admissível nas evocações íntimas; mas, aí, como dissemos há pouco, se consegue estabelecer a identidade por provas de certo modo patentes.

Inegavelmente a substituição dos Espíritos pode dar lugar a uma porção de equívocos, ocasionar erros e, amiúde, mistificações. Essa é uma das dificuldades do Espiritismo prático. Nunca, porém, dissemos que esta ciência fosse fácil, nem que se pudesse aprendê-la brincando, o que, aliás, não é possível, qualquer que seja a ciência.

Jamais teremos repetido bastante que ela demanda estudo assíduo e por vezes muito prolongado. Não sendo lícito provocarem-se os fatos, tem-se que esperar que eles se apresentem por si mesmos. Freqüentemente ocorrem por efeito de circunstâncias em que se não pensa. Para o observador atento e paciente os fatos abundam, por isso que ele descobre milhares de matizes característicos, que são verdadeiros raios de luz. O mesmo se dá com as ciências comuns. Ao passo que o homem superficial não vê numa flor mais do que uma forma elegante, o sábio descobre nela tesouros para o pensamento.

 

NOTA: (1) Há entre esta doutrina da reencarnação e a da metempsicose, como a admitem certas seitas, uma diferença característica, que é explicada no curso da presente obra.

 

 

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